26
Nov19
Sardinhada
Rita Pirolita
Agora que me sento em cadeira confortável e dia tépido que os últimos foram de canícula e abafamento de cancro do pulmão, vou descrever uma noite ambrósia de sardinhas, as verdadeiras protagonistas!
A prática do benemérito patrono do jantar no segundo dia de Outubro trouxe sardinhas na brasa, como o nome diz e obriga na sua correcteza em vez de peixe alinhado em grelha intermediária queima directamente em brasa nobre, composta apenas por pinhas bravas amansadas pelo poder da queimadura, crepitantes e fazedoras de um calor dispensável em noites de mais de 30º mas que mantêm o seu encanto incandescente, no escuro da noite de lua quase cheia e maré-baixa quase até ao fundo do horizonte como de um escorredouro de mar se tratasse, a deixar descoberta a conquilha que escapa pela submersão quase constante de tantos donos de calcanhares que a querem comer sem a deixar crescer o suficiente para fazer rechonchudice que encha a boca numa explosão de sémen oceânico.
As pinhas crepitam e enchem o rosto de febre e luz, minguam e espalham, fazem-se à cama para receber a escamosa prata que em menos de 5 minutos se recolhe em gordura de ómega suculento, se faz transportar ao pão para ser despida da pele e comida aos lombos, a chupar os dedos que no leito da noite se vão esfregar em corpos e lençóis com a sua cheirosa morte devorada em prazer pelo menos até à manhã seguinte.
Rega-se com vinho, sangria, cerveja ou kombucha que a noite não está para escolhas difíceis e sim para libertinagem.
Panos suspensos de yoga experimentado a medo que a idade e o peso nos tiram a leveza dos gestos e nos pesa a experiência da transcendente alma que pese talvez apenas um milésimo de grama.
Assim se reconhece a sabedoria que vem em tempo tardio e corpo a mirrar, quando já não é precisa e se viesse em idade jovem tiraria a beleza dos momentos adolescentes que de drama a beleza têm em comum o encanto fadoso e desconsolo suicidário de parecerem intermináveis.
Na idade do nosso tempo só o eterno é perdurável e a esperança no encanto acaba des-sonhada na morte!
Fala-se de motivação, seitas, descompressão de vértebras e alinhamento de chacras, todos sabemos ao que estamos, o simples e puro prazer de viver, comer um animal com olhos e sem orelhas ou pescoço que à meia hora se contorcia em rede rodeada de cães rafeiros e pescadores rudes modernos cobertos de camisolas NIKE, Lacoste ou TommyHilfiger.
A dureza vestida de PRADA.
As conversas acidentam-se em ponte caída de quando em vez que nós os seres humanos teimamos vezes demais em não deixar fluir mas o tempo está aí sem pena ou compaixão, o dito já foi e o monólogo vira diálogo lançado ou picado, silêncio de dúvida ou ideia tardia calada a pensar na resposta contorcida no argumento enquanto a sardinha se revolve nas papilas intumescidas de saliva.
Todos nos rendemos ao simples alimento pela noite dentro que tanto nos dá energia para pensar e falar como nos atordoa os sentidos em sabor deleitoso...e companhia certa, aquela que está, a que não está nem errada é.
As melgas teimam na bicada de alguns e livram outros de tão pequeno ferimento que tanto incómodo causa.
A noite termina mas não acaba, não desce na temperatura, o convívio esmorece com o torpor da digestão, à sonolência da adiantada hora junta-se a moleza do mar como de dia trabalhoso no campo se tratasse, terminado em felicidade cansada e estômago recomposto por comida de fogo ancestral.
Terminamos em abraços de despedida, dizeres de até amanhã e caloroso amor de alimento.
Destes momentos não guardo nada tal como guardo tudo sem ocupar espaço no tempo ou na alma.