Arqueólogos de sofá
O rasto que vamos deixar vai ser cada vez mais digital, vamos ter muitos arqueólogos de sofá!
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O rasto que vamos deixar vai ser cada vez mais digital, vamos ter muitos arqueólogos de sofá!
Tantas vezes sinto esta vontade de chorar e espiar os pecados da humanidade através de seres inocentes como os animais...devo ser muito louca!
Ai se pudesse fotografar o quente cheiro a mel da giesta e o mofo evaporado da palha cresta...tudo me alvoraça a garganta e me espalha as brasas da alma.
Este Alentejo de neblina de sal, sobreiros descascados, chuva morma e gente morna...
Eu não acredito nestas coisas mas que as há, há...de 7 em 7 anos a minha vida reviravolta-se, mais uma viagem no carrossel!!!
Não tenho muitos heróis de BD que admire, Super-Mulher e Hulk, os únicos favoritos e fico por aí, quanto a personagens mais infantis de edições e colecções intermináveis e a metro, não tinha nenhum que apreciasse especialmente.
Os adultos foram impingindo no meu menu literário, por altura de aniversários, Anita, os 5 ou os 7 mas eu preferia o Sabichão e matava-me a cabeça não saber como o bojudo boneco de aramezinho na mão, acertava em tudo...
Nos livros de capa rija ou formato mole de bolso, as histórias andavam sempre à roda de inocentes aventuras, os personagens nunca cresciam ou envelheciam, não havia sexo, ninguém tinha que trabalhar ou ter medo do desemprego, as crianças não davam cabo do juízo ou do orçamento familiar, andavam sempre a passear e nunca tinham o inconveniente diário da escola ou dos trabalhos de casa, isso eram deveres que apareciam de vez enquando para encher páginas, de resto era sempre regabofe, risada, férias, um sonho de vida com comida garantida na mesa e roupa lavada na cama.
Não existiam arrufos de namoro e muito menos atracção sexual, nem uma pilinha ou maminha de fora, nada de exibicionismo que desse aso a pensamentos sórdidos e pedófilos, calções de escuteiro nos meninos alvos e loiros, meninas de totós com soquetes e cuequinhas de renda a espreitar por baixo de bibes com laçarotes a mostrar joelhos imberbes virados para dentro, à petiza timida e raquítica!
Ansiava eu viver uma realidade tão desafogafa como estes fedelhos naquelas páginas a tresandar a tinta e repletas de cenários idílicos, bochechas afogueadas, borboletas e abelhinhas, flores e morangos.
Ora, especialmente a Anita punha-me os nervos em franja, ficava em ponto de rebuçado, a espumar de inveja pela vida que fazia, vejamos...
A menina ia jardinar, dava uns piparotes feita libelinha esgroviada, plantava duas flores, só sujava uma ponta do vestido, mostrava as cuecas de cu virado para o ar mas não havia vizinho nenhum nas redondezas que batesse uma à custa disso, o patudo Pantufa abria buracos em barda mas nunca a menina fina tinha que dar banho ao cão, tinha assim o dia feito, mais cansada do que se tivesse andado a plantar nabos, no próximo livro aparecia tudo lavadinho e fresco, pronto para mais uma história.
O próprio Pantufa nunca tentava cavalgar numa perna ou manta.
Ele era Anita na cozinha, convidava uma amiga para ajudar a cagar a cozinha toda até ao tecto e nunca tinham que limpar, aliás, a história acabava com a cozinha num caos e elas sentadas a lambuzarem-se com compota de morango, coisa mais sexy não há.
Anita aprende a andar a cavalo e nunca o animal caga, não há moscas nas redondezas ou ela cai e fica numa cadeira de rodas para o resto da vida.
Anita vai andar de avião e não há um único árabe armado em Aladino das carpetes, que se sente ao seu lado a tresandar a suor e a pôr um pacote de manteiga, açúcar, sal e pimenta, tudo misturado no mesmo copo de café, não há um único gordo que ressone ou um bebé que chore a viagem toda até anestesiar o cérebro de todos os passageiros...
Anita trata do irmãozinho bebé que não tem síndrome de Down nem um bracinho lhe falta, nunca o deixa cair com possibilidade de traumatismo craniano com consequências quase mortais, dá-lhe banho e leite no biberão e nunca há risco de escaldos, o Pantufa assiste à muda da fralda e nunca surge a inconveniente surpresa de uma caganeira que borre a criança até às orelhas, tão comum nestas tenras idades.
Anita vai à praia e nunca leva um tupperware de feijoada para o almoço, nunca se afoga ou sofre uma congestão, nunca apanha um escaldão ou se senta ao lado de barrigudos ou gajas em topless, nunca anda com quilos de areia enfiados nos calções...
Anita no campo nunca é picada por abelhas e se fosse nunca teria um ataque anafilático, o pique-nique decorre sempre em toalha bem estendida com comida que de certeza não foi ela que preparou, uma pirralha daquelas não tem arcaboiço para tal manjar.
Anita é daquelas que não suja os dedos a limpar o rabo porque nunca vai ao WC.
Anita aprende a ler e em 10 páginas já está a terminar a primária.
Anita nunca leva um estaladão, um pontapé no rabo, nem que seja assim de raspão, uma colher de pau nunca lhe chega a roupa ao pêlo.
Isto tudo sem nunca sofrer com dores mentruais ou de cabeça, os pais quase nunca andam por perto, sendo uma miúda livre que nem uma passarinha!
Faz mais pela divulgação da doçaria tradicional o português que faz deliciosos pastéis de nata no café onde vou aqui no Canadá, que o chef José Avillez que enriquece à custa de uma cozinha de opção com assinatura que não é típica de lado nenhum.
Os chefs andam à caça de lucro com devaneios enganadores e soma de estrelas à custa de clientes enganados, os verdadeiros cozinheiros enchem almas de aromas e barrigas de satisfação e isso não tem preço!
Obrigada aos simples pasteleiros e cozinheiros por esse mundo fora!
Agora anda tudo com a cagança de comprar coisas em bambu, ele é escovas de dentes, colchões, sapatos...não se deve correr o risco de vir um panda acoplado, já que eu nunca vi um alentejano vir assapado às coisas de cortiça...
Uma mosca na sopa pode ser motivo de reclamação em território dito civilizado mas em tribos que mantêm a ancestralidade, um hamburguer de moscas é com toda a certeza uma iguaria mas acima de tudo uma rara fonte de proteína.
Ora a premissa da tradição terá a sua origem primeiro na questão da sobrevivência, depois na sasonalidade dos produtos locais e por último na cultura e a memória a manter é formada por tudo isto.
Numa perspectiva reducionista e economicista, o tradicional não se compadece com a normalização da globalização. A maioria das pessoas vai a restaurantes baratos, que pela tradição adulterada mais valia comerem em casa, podendo não ser tradicional, seria de maior confiança e feito com mais amor e afectos de memória!
Todos os outros locais de manjar, a que poucos podem ir, vendem conceitos e experiências sem conteúdo ou conduto, ganham estrelas mas não alimentam nem satisfazem como a tasca de petiscos da esquina!
Comer é primariamente um acto umbilical de sobrevivência e praticar uma boa alimentação não depende da riqueza mas de sabedoria, sensatez, aconchego e carinho!